Como quem tem um corpo apenas pela ferida de o perder
(Mia Couto)
(Mia Couto)
Conceituar a mulher é um processo violento. É um processo que limita a potencialidade de ser humano e, sobretudo, invisibiliza mulheres. A invisibilidade é um dos piores males que há. Porque invisibilizar é teimar que o que se vê não existe. Como uma mágica invertida. Em vez de fingir que a ilusão é real, finge que o real é que é ilusão. E o que é ilusão não tem direitos. O que não existe é pior do que o que está morto: o que existe nunca teve vida, nunca teve história, nunca teve voz.
Precisamos de mais histórias, de mais vidas, de menos violência. Para isso, falar sobre a violência contra as mulheres deve ser também falar também da violência contra as mulheres trans*. Mulheres que se tornaram mulheres, como todas nós, em um processo ambivalente de mimetização e subversão. Ser mulher, como todas nós, inspirando-se em outras mulheres e, ao mesmo tempo, ser mulher, ao contrário das demais, mas também como elas, subvertendo o corpo, que impõe uma outra interpretaçãode seu sexo, que ninguém deveriafazer além delas mesmas, geralmente vinculando à genitália um gênero arbitrário.
Os dados são alarmantes. Ano passado, um relatório parcial do Grupo Gay da Bahia divulgou o assassinato de 65 mulheres trans no Brasil. Além disso, entre 2008 e 2013, o Brasil foi responsável por quase 40% dos assassinatos de pessoas trans* no mundo. É necessário que esses crimes sejam computados e lembrados, também, como violência contra a mulher. Um crime de ódio contra o feminino. Contra tudo aquilo que ferir o heterossexismo vigente. Nele reside o ódio contra todas nós, contra o exercício da autonomia do ser humano. Nos lembram de que, a cada vez que tentarmos fugir do padrão tão esperado e tão inverossímil de nós mesmas, estaremos em perigo.
Em cada assassinato de uma mulher transexual reside o ódio pela humanidade inteira, em suas conformações múltiplas e plurais.
Os requintes decrueldade, no entanto, delineiam as especificidades da violência transfóbica: muitas vezes os corpos são mutilados e/ou queimados, porque não basta assassinar a mulher trans, busca-se também negar e apagar tudo o que a pessoa é, tudo o que ela representa. E se o Brasil vai mal, infelizmente não estamos sozinhos: na Nicarágua, quando estavam entediados, policiais obrigavam uma mulher trans ou outra, entre as dedicadas ao trabalho sexual, a ingerir veneno. Riam-se enquanto as viam convulsionar e morrer nas calçadas.
Exposição "Transexuales de Chile" |
E é nas calçadas que começa também o fantástico documentário equatoriano “Patrulha Legal”, que mostra um projeto que acompanha as mulheres trans trabalhadoras sexuais pelas ruas de Quito, para que não sofram abusos de civis ou de policiais. Nele, são narradas algumas práticas outrora corriqueiras, como a de policiais atirarem as mulheres trans em uma lagoa, às três da manhã, com um frio absurdo, para se divertirem um pouco.
Uma sociedade vai mal quando o gênero escandaliza mais que a violência em suas ruas.
De fato, uma pesquisa do NUPSEX da UFRGS, coordenada por Ângelo Brandelli Costa, comprovou que o pior do preconceito, no Brasil, não se dá contra a orientação sexual, mas contra a expressão de gênero. Isto é, a performance, a expressão da identidade sexo-genérica de uma pessoa. Por isso, como as pessoas travestis e transexuais são vistas como tendo uma conduta mais desviante do padrão esperado da representação de gênero masculina-feminina, são as vítimas mais frequentes do preconceito.violência em suas calçadas.
É preciso lembrar, portanto, em datas importantes como esta, que a luta por direitos das mulheres trans é indissociavelmente uma luta das mulheres. Das mualheres cis e das mulheres trans, das mulheres, da humanidade. Estamos todas juntas. Nesses tempos de transfobia, de homofobia, de heterossexismo, de cissexismo e o escambau, cabe rememorar o adágio feminista dos anos 70, à tona com toda a força: não seremos livres até que todas nós sejamos livres.
A violência não terá fim, até que tenha fim para todas. Para todxs.