MADAME SATÃ: UMA ANÁLISE A PARTIR DOS CONCEITO DE INTERSECCIONALIDADES E
CATEGORIAS DE ARTICULAÇÃO
Janaína Freitas[1]
"Esse mulato forte é do Salgueiro.
Passear no tintureiro é o seu esporte,
Já nasceu com sorte e desde pirralho
Vive às custas do baralho,
Nunca viu trabalho.
E quando tira um samba é novidade,
Quer no morro ou na cidade,
Ele sempre foi o bamba.
As morenas do lugar vivem a se lamentar
Por saber que ele não quer se apaixonar por mulher."
Passear no tintureiro é o seu esporte,
Já nasceu com sorte e desde pirralho
Vive às custas do baralho,
Nunca viu trabalho.
E quando tira um samba é novidade,
Quer no morro ou na cidade,
Ele sempre foi o bamba.
As morenas do lugar vivem a se lamentar
Por saber que ele não quer se apaixonar por mulher."
(Noel
Rosa- Mulato Bamba)
O presente trabalho tem como
objetivo analisar o conteúdo do filme "Madame Satã" a partir do artigo "Interseccionalidades, categorias de
articulação experiências de migrantes brasileiras" da pesquisadora Adriana
Piscitelli.
O
conceito de interseccionalidades
(intersectionalities) e categorias de articulação surgem no debate
feminista a partir dos anos 80, quando algumas autoras como Scott (1988), Butler (1990), Strathern
(1988), Haraway (1991) publicam textos críticos acerca da temática de gênero. Estas
obras - que passam a atuar como referências no debate corrente - estavam
propondo uma desconstrução das ideias de sujeito universal autoconsciente do
feminismo, dando lugar a novas formas de problematizar o gênero. Olhares
críticos, acentuadamente influenciados pelo conceito de poder de Foucault
(1977), que pensavam a produção de saber e poder, de determinado contexto
sócio-histórico, como práticas relacionais producentes dos sujeitos.
Na
esteira desses deslocamentos teóricos do debate feminista, como vimos, é que
emergem as noções de articulação e
interseccionalidades. Essas categorias "aludem à multiplicidade das
diferenças que, articulados com gênero, permeiam o social." Visa a analisar os marcadores sociais (classe,
raça, gênero, nacionalidade, regionalismos, sexualidades, etc.) que se
articulam, em contextos singulares, para produzir as diferenças e desigualdades. No entanto, autoras que são referência nessa abordagem
teórico-analítica como Brah, MaCklintock, Crenshaw se utilizam destes termos a
partir de formas singulares de conceber as diferenças, as ideias de poder e
agência do sujeito (agency).
Porém,
utilizar-se-á nessa análise a abordagem construcionista, compartilhada por
autoras como MaCklintock e Brah. Esta linha destaca a dinâmica e fluidez dos
sujeitos em contraposição a uma ideia de identidade social estanque e coerente.
Além disso, percebe as relações de poder como relacionais, reconhecendo,
portanto, a possibilidade de agência do sujeito. Segundo a primeira autora,
categorias como gênero, classe, etnia não existem isoladamente, "nem podem
ser montadas em conjunto como se fosse um lego". Contrariamente, devem ser
pensadas a partir das articulações que estabelecem umas com as outras.
Ao
analisar as categorias articuladas, MaCklintock explora políticas de agência
diversificadas, que envolvem coerção, negociação, cumplicidade. recusa,
mimesis, compromisso e revolta. (PISCITELLI, 2008)
A teórica
indiana Avtar Brah também trabalha com políticas de agência, orientando-se
simultaneamente pelos conceitos de interseccionalidades e categorias de
articulação. Em 1996, situada nos estudos sobre gênero, etnicidade, e
sexulidade no contexto do feminismo negro inglês, publica Cartographies of Diaspora, trazendo uma série de inovações para o
movimento feminista. A autora propõe uma superação do conceito de patriarcado;
optando por utilizá-lo somente nos contextos onde as mulheres são subordinadas.
Brah
visa a formular uma teoria consistente que estude a articulação entre racismo,
gênero e classe a partir de uma análise contextual. Afirma que essas
interconexões precisam ser pensadas como posições de vários racismos, uns em
relação aos outros. A partir dessa análise de relações racializadas, a autora
rejeita as dicotomias positividade/ negatividade, inclusão/ exclusão, a fim de
dar lugar a um olhar crítico que dê conta das complexidades das relações
sociais, "espaços de profunda ambivalência".
O
filme, dirigido pelo cineasta Karim Ainouz, estrelado pelo ator baiano Lázaro
Ramos, retrata a vida do artista mineiro João Francisco dos
Santos, conhecido como Madame Satã;
apelido que fazia referência ao filme homônimo de
Cecil B. DeMille.
João
Francisco dos Santos morava no bairro da Lapa, Rio de Janeiro, na primeira metade
do século XX. Negro, pobre, boêmio, homossexual, presidiário, pai adotivo de
sete filhos, terceiro-mundista, malandro, artista. O lendário personagem da
boêmia carioca carregava uma multiplicidade de marcas que, no contexto
brasileiro dos anos 30 e até hoje, são vistos como sinônimos de exclusão e
subordinação, em muitos espaços.
João
viveu na sociedade da Era Vargas (1930-1945). Extremamente marcada por um
caráter de culto ao trabalho, ao mesmo tempo em que se acirravam as
dificuldades para consegui-lo. A cultura marginal, portanto, era vista como uma
patologia social. As tentativas de exterminá-la desdobravam-se em políticas de
assepsia, que previam o desmanche dos morros, a abertura das avenidas e a
demolição dos cortiços.
No
filme, João trabalhava na função de camareiro para a vedete Vitória (Renata Sorrah)
e a admirava profundamente, ele também tinha o sonho de ser artista. No Cabaré
Lux, onde Vitória apresentava um número de Josephine Baker, João (nos
bastidores) idolatrava-a e sabia de cor cada palavra da música, cada gesto do
número. Este trabalho e, certamente, o efervescente contexto artístico-cultural
da Lapa dos anos 30 influenciaram o desejo de João tornar-se um artista.
A
crítica, feita pela teoria da interseccionalidades, como vimos, visava a
superar a ideia de "superposição de opressões", na qual o sujeito era
sempre vítima da subordinação gerada pelos seus marcadores sociais. Nesse
sentido, estas novas perspectivas analíticas são sugestivas para refletirmos
sobre como a intersecção das diferenças produziu as relações nas quais Madame Satã estava situado.
Apesar
de sua situação singular, o personagem é apresentado no filme de modo à
transcender alguns destes condicionantes sociais. Madame Satã tentou inventar
um outro modo de estar no mundo. O próprio apelido adotado por João Francisco
revelava esta tentativa de embaçar a integralidade de uma identidade: Madame
faz alusão a feminilidade, sofisticação, enquanto Satã sugere masculinidade,
força, destruição. Fazia uso de estratégias corajosas e criativas para resistir
ao que costumava ser visto como um contexto de dor e exploração. Produzia
linhas de fuga através das performances de gênero nos bares da Lapa, do
desacato à autoridade e de suas idas e vindas à prisão. Portanto, como sugere Piscitelli
(2008),
A diferença nem sempre é
um marcador de hierarquia nem opressão. Uma pergunta a ser constantemente feita
é se a diferença remete a desigualdade, opressão, exploração. Ou, ao contrário,
se a diferença remete ao igualitarismo, diversidade, ou a formas democráticas
de agência política.
Por
fim, a questão central do filme é mostrar que alguém como Madame Satã- pobre,
preto, gay, artista, criminoso - teoricamente sem possibilidades de superar sua
posição "subordinada" conseguiu, movido pelo desejo, realizar seu
sonho, produzindo focos de resistência; um corpo-intifada. Além disso, a
representação da vida de Madame Satã, bem como as teóricas da
interseccionalidade nos convidam a revisitar nossos instrumentos de análise
teórica a fim de que possamos fazer a tentativa de abarcar as idiossincrasias
tanto no campo de estudos feministas quanto nas demais áreas de pesquisa.
Referências:
PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e
experiências de migrantes brasileiras. Sociedade
e Cultura, 2008, v.11, n.2, jul/dez, p. 263-274.
[1] Aluna do
curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul