sábado, 11 de maio de 2013

Madame Satã: uma análise a partir dos conceitos de interseccionalidades e categorias de articulação


MADAME SATÃ: UMA ANÁLISE A PARTIR DOS CONCEITO DE INTERSECCIONALIDADES E CATEGORIAS DE ARTICULAÇÃO

Janaína Freitas[1]

"Esse mulato forte é do Salgueiro.
Passear no tintureiro é o seu esporte,
Já nasceu com sorte e desde pirralho
Vive às custas do baralho,
Nunca viu trabalho.
E quando tira um samba é novidade,
Quer no morro ou na cidade,
Ele sempre foi o bamba.
As morenas do lugar vivem a se lamentar
Por saber que ele não quer se apaixonar por mulher."
(Noel Rosa- Mulato Bamba)
            O presente trabalho tem como objetivo analisar o conteúdo do filme "Madame Satã" a partir do artigo "Interseccionalidades, categorias de articulação experiências de migrantes brasileiras" da pesquisadora Adriana Piscitelli.
            O conceito de interseccionalidades  (intersectionalities) e categorias de articulação surgem no debate feminista a partir dos anos 80, quando algumas autoras  como Scott (1988), Butler (1990), Strathern (1988), Haraway (1991) publicam textos críticos acerca da temática de gênero. Estas obras - que passam a atuar como referências no debate corrente - estavam propondo uma desconstrução das ideias de sujeito universal autoconsciente do feminismo, dando lugar a novas formas de problematizar o gênero. Olhares críticos, acentuadamente influenciados pelo conceito de poder de Foucault (1977), que pensavam a produção de saber e poder, de determinado contexto sócio-histórico, como práticas relacionais producentes dos sujeitos.
            Na esteira desses deslocamentos teóricos do debate feminista, como vimos, é que emergem  as noções de articulação e interseccionalidades. Essas categorias "aludem à multiplicidade das diferenças que, articulados com gênero, permeiam o social."  Visa a analisar os marcadores sociais (classe, raça, gênero, nacionalidade, regionalismos, sexualidades, etc.) que se articulam, em contextos singulares, para produzir as diferenças  e desigualdades. No entanto, autoras  que são referência nessa abordagem teórico-analítica como Brah, MaCklintock, Crenshaw se utilizam destes termos a partir de formas singulares de conceber as diferenças, as ideias de poder e agência do sujeito (agency).

            Porém, utilizar-se-á nessa análise a abordagem construcionista, compartilhada por autoras como MaCklintock e Brah. Esta linha destaca a dinâmica e fluidez dos sujeitos em contraposição a uma ideia de identidade social estanque e coerente. Além disso, percebe as relações de poder como relacionais, reconhecendo, portanto, a possibilidade de agência do sujeito. Segundo a primeira autora, categorias como gênero, classe, etnia não existem isoladamente, "nem podem ser montadas em conjunto como se fosse um lego". Contrariamente, devem ser pensadas a partir das articulações que estabelecem umas com as outras.
                                
   Ao analisar as categorias articuladas, MaCklintock explora políticas de agência diversificadas, que envolvem coerção, negociação, cumplicidade. recusa, mimesis, compromisso e revolta. (PISCITELLI, 2008)

            A teórica indiana Avtar Brah também trabalha com políticas de agência, orientando-se simultaneamente pelos conceitos de interseccionalidades e categorias de articulação. Em 1996, situada nos estudos sobre gênero, etnicidade, e sexulidade no contexto do feminismo negro inglês, publica Cartographies of Diaspora, trazendo uma série de inovações para o movimento feminista. A autora propõe uma superação do conceito de patriarcado; optando por utilizá-lo somente nos contextos onde as mulheres são subordinadas.
           Brah visa a formular uma teoria consistente que estude a articulação entre racismo, gênero e classe a partir de uma análise contextual. Afirma que essas interconexões precisam ser pensadas como posições de vários racismos, uns em relação aos outros. A partir dessa análise de relações racializadas, a autora rejeita as dicotomias positividade/ negatividade, inclusão/ exclusão, a fim de dar lugar a um olhar crítico que dê conta das complexidades das relações sociais, "espaços de profunda ambivalência".
            O filme, dirigido pelo cineasta Karim Ainouz, estrelado pelo ator baiano Lázaro Ramos, retrata a vida do artista mineiro João Francisco dos Santos, conhecido como Madame Satã;  apelido  que fazia referência  ao filme homônimo de Cecil B. DeMille.
            João Francisco dos Santos morava no bairro da Lapa, Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX. Negro, pobre, boêmio, homossexual, presidiário, pai adotivo de sete filhos, terceiro-mundista, malandro, artista. O lendário personagem da boêmia carioca carregava uma multiplicidade de marcas que, no contexto brasileiro dos anos 30 e até hoje, são vistos como sinônimos de exclusão e subordinação, em muitos espaços.
            João viveu na sociedade da Era Vargas (1930-1945). Extremamente marcada por um caráter de culto ao trabalho, ao mesmo tempo em que se acirravam as dificuldades para consegui-lo. A cultura marginal, portanto, era vista como uma patologia social. As tentativas de exterminá-la desdobravam-se em políticas de assepsia, que previam o desmanche dos morros, a abertura das avenidas e a demolição dos cortiços.  
            No filme, João trabalhava na função de camareiro para a vedete Vitória (Renata Sorrah) e a admirava profundamente, ele também tinha o sonho de ser artista. No Cabaré Lux, onde Vitória apresentava um número de Josephine Baker, João (nos bastidores) idolatrava-a e sabia de cor cada palavra da música, cada gesto do número. Este trabalho e, certamente, o efervescente contexto artístico-cultural da Lapa dos anos 30 influenciaram o desejo de João tornar-se um artista.
            A crítica, feita pela teoria da interseccionalidades, como vimos, visava a superar a ideia de "superposição de opressões", na qual o sujeito era sempre vítima da subordinação gerada pelos seus marcadores sociais. Nesse sentido, estas novas perspectivas analíticas são sugestivas para refletirmos sobre como a intersecção das diferenças produziu as relações nas quais  Madame Satã estava situado.
            Apesar de sua situação singular, o personagem é apresentado no filme de modo à transcender alguns destes condicionantes sociais. Madame Satã tentou inventar um outro modo de estar no mundo. O próprio apelido adotado por João Francisco revelava esta tentativa de embaçar a integralidade de uma identidade: Madame faz alusão a feminilidade, sofisticação, enquanto Satã sugere masculinidade, força, destruição. Fazia uso de estratégias corajosas e criativas para resistir ao que costumava ser visto como um contexto de dor e exploração. Produzia linhas de fuga através das performances de gênero nos bares da Lapa, do desacato à autoridade e de suas idas e vindas à prisão.  Portanto, como sugere Piscitelli (2008),

A diferença nem sempre é um marcador de hierarquia nem opressão. Uma pergunta a ser constantemente feita é se a diferença remete a desigualdade, opressão, exploração. Ou, ao contrário, se a diferença remete ao igualitarismo, diversidade, ou a formas democráticas de agência política.  

            Por fim, a questão central do filme é mostrar que alguém como Madame Satã- pobre, preto, gay, artista, criminoso - teoricamente sem possibilidades de superar sua posição "subordinada" conseguiu, movido pelo desejo, realizar seu sonho, produzindo focos de resistência; um corpo-intifada. Além disso, a representação da vida de Madame Satã, bem como as teóricas da interseccionalidade nos convidam a revisitar nossos instrumentos de análise teórica a fim de que possamos fazer a tentativa de abarcar as idiossincrasias tanto no campo de estudos feministas quanto nas demais áreas de pesquisa.


Referências:

PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, 2008, v.11, n.2, jul/dez, p. 263-274.




[1] Aluna do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul